Comunidade de aprendizagem: entrevista com José Pacheco, do projeto Âncora

Blog Comunidade de aprendizagem: entrevista com José Pacheco, do projeto Âncora

13/07/2017
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O educador português José Pacheco se descreve como aprendiz, mas também ensina a muitas pessoas. Ele foi o idealizador da Escola da Ponte de Portugal, mundialmente reconhecida por aplicar um novo modelo de aprendizagem com projetos individuais para os alunos, que não aprendem na sala de aula, mas com uma vivência completa acompanhada por tutores.

Aqui no Brasil, o educador ajudou a criar vários protótipos de aprendizagem. Um deles, o Projeto Âncora, localizado em Cotia, São Paulo, aplica uma comunidade de aprendizagem, incentivando a autonomia dos estudantes.

Em entrevista para o CER, ele fala um pouco sobre sua experiência no projeto e na Escola da Ponte. Confira abaixo:

1- É possível traçar um paralelo entre as realidades da Escola da Ponte e do Projeto Âncora?

Eu vim para o Brasil a pedido do Rubem Alves, porque ele se encantou com a Escola da Ponte. Mas ela é europeia e pouco tem a ver com o Brasil. Há 41 anos, a Ponte fez, pela primeira vez do mundo – e numa escola pública –, uma ruptura total com o modelo educacional construído nos séculos XVIII e XIX, que é o que está nas escolas atualmente. E fez isso com pleno êxito, com excelência acadêmica e inclusão social.

O Âncora não foi o primeiro projeto que participei no Brasil. Ele vai muito além da Ponte. É um protótipo daquilo que pode ser uma comunidade de aprendizagem, uma nova construção social, que substitui a do século XIX. Lá, professores começaram a trabalhar com projetos de vida, adaptados para cada estudante. Uma tripla dimensão curricular com a comunidade e não para a comunidade. Hoje ele é uma das melhores escolas em termos de desempenho e só trabalha com classes E e F.

Não faz sentido ter alunos do século XXI e professores do século XX trabalhando como se fazia no século XIX. Os resultados são um alto nível de evasão, milhões de analfabetos, professores humilhados, violência extrema, crise política e ética. Se o modo como as escolas trabalham não garante o direito à educação, elas não podem trabalhar dessa forma.

2- Como é ensinar sem um dos principais símbolos educacionais: a sala de aula?

Em uma aula nada se aprende, isso é um tabu. A sala de aula é coisa de quando diziam que era preciso ensinar a todos de uma forma só. É a organização do tempo padrão da Revolução Industrial, é produção em massa.

A aula é decadente, do século XVII. Aprendizagem é uns com os outros. É na relação que se aprende.

O que me preocupa é quem continua a produzir o velho modelo que condena milhões  à ignorância. Eu não tenho soluções. Aprendo com os outros a fazer comunidade de aprendizagem. Comunidades que começaram no Brasil – a primeira em 1905 –, 90 anos antes de surgirem na Inglaterra.

3 – Como é feita a avaliação do desempenho dos alunos nesse ensino não tradicional?

É comum me perguntarem se eu não faço avaliação. Eu faço. Já as escolas brasileiras que aplicam provas, não avaliam. Elas fazem classificação, não avaliação.

No nosso ensino integral, a avaliação não é só do âmbito cognitivo. Ela é emocional, afetiva, ética, estética e de atitudes. As escolas são pessoas e pessoas são seus valores. Por isso, a avaliação deve ser formativa, contínua e sistemática. Nós até aplicamos provas eventualmente para ver como está o nível geral, mas perguntamos quem quer fazer o teste antes. O resultado é que as crianças são muito mais avançadas em relação à sua idade.

Aqui, quando a criança quer aprender, ela fala com a tutora e montam juntas um roteiro de estudo, que inclui pesquisa, internet, tempo com professor, trabalho individual, leitura de livros e muito mais. Quando ela sente que já sabe, conversa com a tutora e depois compartilha o que aprendeu. Conhecimento com ação é competência.

No Projeto Âncora, não são 4 horas de aulas por dia, são 24h, pois aprendemos até dormindo. São 365 dias por ano. O banheiro do aluno não é separado do banheiro do professor. As bibliotecas não estão fechadas ou vazias. O professor não está sozinho.

4 – Quais os principais desafios para os alunos quando encontram um sistema de ensino em que a autonomia é peça-chave?

O maior obstáculo são os próprios alunos, porque eles querem ter aula. É mais fácil escutar o professor falando enquanto mexem no celular do que aprender. Mas escola é lugar de aprendizagem e não de preguiça.

Por isso, eles têm que transcender sua cultura, a ansiedade, a família. Quando os alunos chegam, nós damos todo o tempo que precisam para adaptação. Eles entram no Núcleo de Iniciação, em que aprendem a pesquisar, avaliar, comparar, sintetizar e comunicar informação, a usar plataformas digitais de aprendizagem, a escutar e a respeitar o outro. Quando adquirem essas capacidades, são encaminhados para o Núcleo de Consolidação. Não importa a idade, todos entram no mesmo núcleo, tanto crianças de 2 anos como homens de 80.

A aprendizagem não é feita dentro de um edifício, ela é feita em muitos lugares, na internet, no mato, na comunidade, nas praças, nas pessoas. E os alunos aprendem porque têm um projeto. Assim, a aprendizagem é significativa. São eles que definem os projetos e o roteiro é construído em conjunto com os professores, respeitando toda a grade curricular nacional, coisa que as escolas de hoje não fazem.

5 – Como você avalia a formação dos alunos desse ensino que não segue o modelo tradicional? Eles estão preparados para o mercado de trabalho?

Para comprovar isso, podemos falar da Escola da Ponte, que já tem mais tempo de existência. Ela possui milhares de egressos e a maioria deles é formada de empresários, que inclusive dão oportunidade de trabalho para pessoas especiais. Formamos muitos professores, diversos artistas.

Os alunos desse ensino são bons inclusive nos vestibulares. É curioso, já que eles não fazem provas na escola, mas quando fazem são os melhores.

 

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