Formação do professor atual – com Kátia Stocco Smole

Blog Formação do professor atual – com Kátia Stocco Smole

07/12/2022
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A formação dos professores é ainda um tema desafiador para os agentes educacionais – seja na escolha do material, seja na disponibilidade de tempo, seja mesmo no papel dos gestores da escola.

Para trazer luz ao tema, entrevistamos a professora doutora Kátia Stocco Smole, diretora do Instituto Reúna e fundadora do Grupo Mathema. Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, Kátia já foi secretária de Educação Básica do ME.

1 – Com o advento da nova Base Nacional Curricular Comum (BNCC), houve alguma mudança nos currículos de formação dos professores e dos pedagogos?

Temos aprovadas duas novas regulamentações – a Resolução 2 de 2019 e a Resolução 1 de 2020, ambas feitas pelo Conselho Nacional de Educação, CNE, que norteiam essas mudanças na formação dos professores especialistas e dos pedagogos.

A Resolução CNE 2 de 2019 prevê mudanças nos currículos de formação de professores, tanto na pedagogia quanto na licenciatura. Ela traz uma Base Nacional Comum de formação docente que deveria organizar os currículos, com diretrizes para a formação inicial. A sua implementação, no entanto, foi adiada pelo Ministério da Educação em razão de uma pressão das universidades públicas que desejam mais tempo para discuti-la e também do processo eleitoral de 2022. Todavia, há universidades privadas que têm estudado para analisar modificações previstas em sua grade curricular.

Vale destacar que a Resolução 2 de 2019 é importante, não somente para cumprir a determinação de alinhamento com a BNCC, mas também porque apoia o cumprimento de uma meta do Plano Nacional de Educação relativa à melhoria da qualidade da profissão docente e da formação, o que é essencial

A meta 15 traz uma mudança na política de formação associada com as diretrizes feitas pelo Conselho Nacional de Educação. Assim, como a meta 16 (também do Plano Nacional de Educação), essa se relaciona com a formação continuada e com a pós-graduação dos professores, que diz que, no término do Plano Nacional de Educação, isto é, em 2024, deveríamos alcançar o marco de 50% dos professores com algum tipo de pós-graduação ou formação continuada.

O Conselho Nacional de Educação também elaborou uma diretriz de formação, ou seja,a Resolução 1 de 2020, que, por sua vez, já está mais avançada na implementação pelos estados e municípios.

Temos uma tarefa muito importante para os ministros e os secretários estaduais de Educação para que ambas as resoluções sejam de fato implementadas a partir de 2023.

2 – Como os professores formados antes da BNCC podem se qualificar e se preparar para temas como a formação socioemocional?

Essa é uma pergunta muito relevante. Primeiro, porque precisamos fazer uma formação de professores que tenha centralidade no seu desenvolvimento profissional, na formação continuada. Por isso, aquelas diretrizes inseridas na Resolução 1 de 2020 são muito importantes, pois elas trazem isso para o centro da discussão. Essa formação terá que ocorrer em um regime de colaboração entre o ministério e, especialmente, entre as redes públicas estaduais e municipais.

O regime de colaboração precisa funcionar. Em 2018, nós tínhamos o Pró BNCC – um programa de apoio às redes para a implementação da Base. Mas esse programa se encerrou prematuramente no Ministério da Educação. Seria muito especial algo similar para que as redes tivessem apoio financeiro e orientações técnicas nesse processo de formação continuada dos professores visando à implementação das inovações curriculares.

Um primeiro ponto de destaque sobre a formação dos professores é que o ministério pode induzir a formação, mas o Brasil tem uma extensão territorial muito grande, para que o ministério consiga levar formação a todos os lugares e definir o que é regionalmente fundamental. Por isso, é necessária uma política indutora, com metas de alcance e diretrizes gerais, que possam ser monitoradas, inclusive para o uso correto dos recursos. Nesse aspecto, é essencial que cada estado e seus municípios façam os seus processos formativos em  regime de colaboração, considerando as suas especificidades e os desafios locais, e de  modo que a BNCC seja o centro desse processo de formação continuada.

Um segundo ponto a considerar é o de a formação estar em consonância com a Base, o que é ainda um desafio.

O Instituto Reúna, que eu dirijo, fez uma pesquisa de consensos e dissensos em relação à BNCC, e nós perguntamos a professores e a especialistas o que era estar alinhado com a BNCC. E um dos resultados foi a não clareza sobre o que é esse alinhamento.

Um terceiro ponto é que, nessa mesma pesquisa conduzida pelo Instituto Reúna, quando perguntamos o que os entrevistados consideravam mais desafiador no que tange à implementação da BNCC, a resposta diz respeito justamente às competências gerais e ao desenvolvimento socioemocionaL. Então, de fato precisamos contribuir para que as redes tenham esse plano de formação e, a partir disso, ajudem a entender melhor como trabalhar tais competências.

3 – Como as escolas podem contribuir para a formação de seus docentes?

Em primeira e última instância, a escola é o centro da educação – é para a escola e na escola que as coisas precisam acontecer para que qualquer política de fato seja implementada. Nesse sentido, as equipes gestoras das escolas, em conjunto com seus professores, podem levantar questões desafiadoras que devem ser cuidadas na formação. Cada escola, localidade ou equipe pode ter suas necessidades e especificidades.

Na minha opinião, vale destacar a importância de ter e usar bem os momentos de estudo colaborativo. No caso das redes públicas, usar bem os momentos de horário de trabalho pedagógico coletivo (HTPC), isto é, o tempo que os professores podem estudar (que podem receber outras denominações), e ter um planejamento para essas ocasiões (pautas e horários).

Na pandemia, por exemplo, foram feitas várias pautas formativas no Instituto Reúna – de mapas de foco, com o intuito de trabalhar as competências gerais da BNCC e as especificidades das áreas. É necessário que isso  seja levado para a escola e desenvolvido com os professores.

Sem dúvida, a coordenação da rede, com as suas escolas, é importante. Mas as equipes gestoras da escola precisam focar nessa questão, visto que muitas escolas já têm um terço das aulas para que a formação se dê.

Temos casos interessantes que podem servir de inspiração. Algumas redes no Brasil criaram um período da semana em que todos os professores de uma série ou de uma área estão com aulas atribuídas, mas em momentos de estudo – com 1 ou 2 horas por semana, às vezes, até um pouco mais. De forma que essas oportunidades permitem que um estudo planejado seja colocado em prática – daí a secretária fornece conteúdo e roteiro de estudo, e a própria escola usa aquilo para estudar o planejamento e as questões práticas. A escola tem de trazer a prática da escola para esse trabalho de formação.

4 – Um dos desafios dos educadores e das escolas nessa formação é a jornada dupla de muitos professores. Como conciliar o desafio da formação com a escassez de tempo e a sobrecarga de trabalho?

O ideal não é reunir os professores fora do horário de trabalho, ou aos sábados. Nas escolas, o recomendado seria que esses momentos de formação estivessem contratados com os professores no horário de trabalho ou muito próximo disso

Outro ponto é que muitos professores buscam formação, como cursos onlines, por iniciativa própria, voluntariamente, dentro de sua janela de tempo. E isso é uma escolha deles, no entanto não deve ser a regra da formação ofertada pela rede.

Vale destacar que não é a maioria dos professores que têm jornada dupla de trabalho, mas isso existe e precisa ser considerado quando se faz um plano de ação formativa, porque a formação deve ser para todos e incluir esses professores.

É necessário que as redes  tenham um acordo com seus professores para que esses momentos aconteçam – como é o caso do horário de trabalho pedagógico – por estarem incluídos nas normas de atribuição de aulas de modo geral.

A cidade de Sobral (CE), por exemplo, tem um programa bastante interessante, em que toda semana o professor tem um tempo de formação. Em uma semana, esse tempo é realizado na escola, com os pares e o coordenador. Na outra semana, esse tempo é usado no Centro de Formação de Sobral. De qualquer jeito, quando ele faz o uso desse tempo dentro da jornada escolar, a classe dele não fica sozinha, porque tem um mesmo professor, que participa da organização e do planejamento para substituí-lo, naquele momento da semana. São Paulo criou essa oportunidade também para os professores do Ensino Médio no horário de trabalho coletivo, assim como o Estado do Espírito Santo.

É necessário fazer planejamento e investimento a fim de que os períodos de formação dentro da escola sejam efetivados. E isso é uma via de mão dupla. A rede precisa criar essa estrutura para as escolas, e essa pode ser com a disponibilização de estagiários, professores substitutos ou contratados especificamente para isso. E os professores, por sua vez, têm de cumprir essa atribuição. Em suma, é um esforço conjunto entre rede, escola e professor.

As plataformas podem ser usadas nos momentos de formação continuada contratadas, porém é necessário planejamento e organização por parte do órgão central.

5 – Existe, hoje, algum sistema nacional de apoio à formação continuada de professores?

Não, há iniciativas isoladas. O Ministério da Educação na Secretaria de Educação Básica ou na Secretaria de Alfabetização disponibiliza cursos , os quais os professores podem fazer por conta própria; outros são oferecidos para as redes – estas se responsabilizam pelo alinhamento com as plataformas do ministério; existem também algumas iniciativas feitas pela CAPES. O processo tem méritos de ser descentralizado, mas também é pouco articulado.

Vale destacar que não vejo que o Brasil deva ter um sistema federal de formação de professores, centralizado, até porque um sistema assim  não funcionaria, por algumas razões.Primeiramente, porque o Brasil é uma república federativa com autonomia dos entes federados, e isso significa que o Ministério da Educação pode e deve apoiar a elaboração de uma “política nacional de formação docente”. Contudo, como os professores da Rede Básica da Educação Infantil ao Ensino Médio não são professores federais, e sim professores das redes municipais ou estaduais, é necessário um planejamento integrado e colaborativo, que possa ser coordenado pelo MEC, mas que deve ser conduzido nos âmbitos estaduais e municipais. Já temos algumas iniciativas que foram programas, mas não um sistema coordenado.

Em segundo lugar, não conseguiríamos, nem recomendaríamos , impor que os professores fizessem formação. O Ministério da Educação não tem, e obviamente não deveria ter, uma ingerência sobre as Secretarias de Educação estaduais ou municipais. Então, precisaríamos de um grande regime de colaboração com o objetivo de criar políticas indutoras de formação inicial e continuada docente.

Por fim, o ministério está muito distante das redes e suas escolas – o Brasil é muito extenso, e são muitas as especificidades e necessidades. A formação de um professor em uma zona rural talvez tenha de ser diferente da formação de um professor que está numa escola urbana. Não conseguimos levar uma formação única que atenderia a todas as características e regionalidades. Por isso, apenas a gestão das secretarias com suas escolas deve definir como, quando e o conteúdo da formação. É claro que devemos ter uma Base Nacional de Formação Continuada Docente como prevê a resolução CNE 1 de 2020, mencionada anteriormente, mas até mesmo essa deve ganhar os contornos locais.

6 – Professora, e no resto do mundo? Temos algum exemplo ou caso de sucesso em que podemos nos basear?

Temos muitos casos de sucesso. Na Finlândia, por exemplo, há um programa que tenha centralizado a formação dos professores – lentamente, com o passar dos anos, algumas poucas universidades ficaram creditadas para fazer a formação inicial, predominantemente residencial, com um sistema de apoio, estágio probatório e plano de carreira.

Podemos citar ações bem interessantes na Inglaterra, na Estônia e no Chile. Em Singapura, por exemplo, tem-se todo um planejamento de carreira associado à formação, assim como na Austrália – em que há um modelo de progressão de carreira que leva em consideração a formação inicial,  o estágio probatório e um plano de melhoria e avaliação contínuos.

O que se percebe de semelhança entre esses casos de sucesso é o estabelecimento de um currículo comum, a progressão e valorização da carreira, não somente salarial, mas também isso, assim como reconhecimento social e condições de trabalho adequadas.

Mas quais as diferenças entre esses países e o Brasil? Muitas. O alinhamento entre políticas – eles construíram uma formação com os grandes pressupostos da educação nacional; são países territorialmente bem menores, exceção feita à Austrália. Então, coordenar essa formação é mais fácil, já que são menos centros de formação ou faculdades, e a forma de organização do Estado para a gestão da carreira docente é mais centralizada pelo governo nacional.

No Brasil, temos uma quantidade maior de universidades e centros de formação municipais, estaduais, nacionais, públicos e privados; há uma regulamentação nacional que encontra barreiras para ser desenvolvidas já nas organizações formadoras,  e essa legislação ainda pode se desdobrar em especificidades nos Conselhos Estaduais de Educação .

Desse modo, é muito difícil olhar para uma política que funcionou em algum outro país e tentar trazer para o Brasil, exatamente como ela é. Um raciocínio que podemos construir aqui é: o que esses países fizeram para conseguir virar o jogo da formação de professores em 20 anos, de tal forma que a carreira seja tão interessante e vislumbrada como a de um médico? Estudar casos de sucesso nos permite avançar mais rapidamente, apoiar reflexões, entretanto os caminhos são desafiadores.

7 – Como podemos mobilizar recursos para apoiar essa formação dos professores?

Todo mundo faz formação continuada dos professores, o que falta é coordenação. É entender aonde se quer chegar e de se ter mais clareza de grandes diretrizes. Neste aspecto, as resoluções do CNE que mencionei nos ajudam com essas grandes diretrizes. Agora, devemos implementá-las.

Tal implementação precisa de ter metas, que sejam traduzidas em ações e passíveis de ser monitoradas e mensuradas em resultados.E o resultado que queremos alcançar diz respeito a estudantes aprendendo mais em sala de aula.

Falando em mobilização de recursos, são necessários os financeiros, mas também os recursos físicos e os recursos humanos.

Começando pelos recursos financeiros, no volume necessário, ele deve vir do Ministério da Educação, dos estados e dos municípios. Depois temos uma questão de espaços e formadores – isto é, os recursos físicos e humanos. Eu gosto muito da ideia de aproveitarmos a capacidade instalada das universidades. Mas não pode ser a universidade que determina ou escolhe a formação a ser feita, isto é, a Rede precisa ter esse plano e pactuar com esses agentes formadores a realização do plano que definiu,  sejam eles a universidade, sejam eles outras instituições. Precisamos de uma formação próxima da sala de aula, que resolva as questões práticas e do dia a dia, e não uma formação mais teórica ou ampla.

Essa formação não pode ser pontual ou isolada, mas contínua, visto que precisa usar de uma metodologia “mão na massa”, que trabalhe com questões reais da escola, do currículo e da aprendizagem, estruturando-se de maneira colaborativa, para que os professores entendam o que e como ensinar de forma integrada.

Portanto, a mobilização de recursos não passa somente pelas questões financeiras, uma vez que é necessário um bom plano de formação, um bom processo seletivo a fim de escolher os formadores. Deve haver também o monitoramento constante para acompanhar se e como a formação está sendo efetiva, que ajustes são necessários, etc.

Eu acredito firmemente, e o Instituto Reúna defende, que, para ser bem–sucedida, a formação precisa estar em um processo de coerência pedagógica sistêmica, isto é, alinhada com o currículo, com a avaliação da aprendizagem e com o uso do material didático que os professores usam.

8 – Você acredita na força das trocas entre os educadores como uma via de formação continuada?

Totalmente. Acredito que toda formação continuada deveria proporcionar a criação de comunidades de práticas – em que eles possam trocar sucessos e dúvidas. Podemos mapear mais as boas práticas e impulsionar esse compartilhamento.

Temos exemplos interessantes nos países asiáticos, onde os professores que conseguem bons resultados de aprendizagem com seus estudantes se tornam formadores de pares na mesma região, seja de forma online, seja em pequenos encontros presenciais. Aqui no Brasil, a iniciativa mais próxima que temos disso vem da Fundação Lemann e se chama “Conectando Saberes”, que está criando uma rede de professores conectados em cada região do país e entre as diferentes regiões.

Seria importante levarmos casos práticos para dentro da fase de formação, abrindo espaços para compartilhamos práticas e trocarmos sugestões de melhorias.

Todavia, essas comunidades precisam ter foco. Se não tivermos regras ou lideranças para estimular práticas, conversas e trocas, as comunidades podem ser muito paralisantes, porque os problemas tomam mais tempo que sua solução.

9 – E quais os recursos e meios você indicaria para esses professores buscarem por formação continuada?

São tantos os recursos disponíveis – conteúdos gratuitos produzidos nas redes sociais, como lives e conversas no Instagram, no YouTube, em plataformas gratuitas, em recursos abertos de aprendizagem.

O professor, assim como a rede, precisa saber o que falta para ele para estruturar um plano de formação, pessoal ou coletivo. E essa busca pode ser ativa e focada na necessidade de cada um.

O importante é, sempre, ao buscar alguma coisa, refletir sobre como aquele conteúdo ou formação pode transformar a sua prática.

Vale fazer uma reflexão sobre que tipo de aprendizado pode impactar a própria prática e contribuir para melhores resultados de aprendizagem dos estudantes.

10 – Dentre tantas transformações, principalmente com a pandemia, quais habilidades são essenciais aos professores?

Não necessariamente em ordem de importância, mas poderíamos destacar as seguintes: cultura digital; empatia (capacidade de entender o outro); conhecimento técnico (ninguém ensina o que não sabe); conhecer como os estudantes aprendem; saber avaliar a aprendizagem, o autoconhecimento, a autogestão e a colaboração. Vale ressaltar que autoconhecimento e autogestão não significa viver de forma isolada ou autocentrada.

11- Tratando-se da aplicação da Educação Empreendedora nas instituições de ensino, o que você considera fundamental no processo de formação do professor?

Primeiramente, o professor precisa compreender o que é empreender. Nós, professores, não fomos formados para empreender – é muito difícil  trabalhar essa competência sem conhecer o significado amplo desse termo. O “empreender” pode envolver algum projeto pessoal, a conquista de algum sonho ou mudar a forma de agir. Saber empreender, em situações de monetização ou não, implica etapas, gestão, planejamento – e esses temas não estão no radar da formação de professores.

Há casos em que os professores têm uma visão bastante deturpada, em que se quer transformar a escola em um centro de comércio. Tudo isso ocorre pelo desconhecimento da amplitude do “empreender”.

É bem desafiador incluir esse tema; e, antes de mais nada, é necessário compreender o seu significado.

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